Por Janaína Lopes, João Pedro Lamas, Matheus Beck e Juliana Borgmann*, g1 RS


Boate Kiss — Foto: Juliana Borgmann/G1

Começa na quarta-feira (1º) o julgamento de quatro réus no caso da boate Kiss, quando, em janeiro de 2013, 242 pessoas morreram e 636 ficaram feridas após um incêndio atingir a casa noturna.

O g1 acompanha ao vivo o tribunal do júri direto do Foro Central de Porto Alegre.

Principais pontos deste julgamento

  1. Quem são os réus?
  2. Quais os crimes?
  3. Como funcionará o julgamento?
  4. O que dizem as defesas?
  5. Por que o processo se estende por quase nove anos?

Boate Kiss — Foto: Juliana Borgmann/G1

1. Quem são os réus?

  • Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, 38 anos, era um dos sócios da boate
  • Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, era outro sócio da Boate Kiss
  • Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos, músico da banda Gurizada Fandangueira
  • Luciano Augusto Bonilha Leão, 44 anos, era produtor musical e auxiliar de palco da banda

O Ministério Público denunciou, com base nos inquéritos da Polícia Civil e da Polícia Militar, outras 20 pessoas, incluindo bombeiros, sócios, ex-sócios ou pessoas que tinham relação com a boate. Elas foram denunciadas pelos crimes de falsidade ideológica, fraude processual, falso testemunho, negligência e prevaricação.

Ainda foram denunciadas por falsidade ideológica outras 27 pessoas que assinaram documento dizendo morar a menos de 100 metros da boate, o que não era verdade e foi comprovado em investigação policial.

Outros quatro bombeiros militares foram denunciados por improbidade administrativa em ação civil pública, sendo dois ex-comandantes do 4º Comando Regional e dois ex-chefes da Seção de Prevenção de Incêndio do batalhão.

Assim, no total, respondem ou responderam judicialmente em processos relacionados à tragédia da boate Kiss 51 pessoas.

2. Quais são os crimes?

Os réus são julgados por 242 homicídios consumados e 636 tentativas (artigo 21 do Código Penal). Na denúncia, o Ministério Público havia incluído duas qualificadoras — por motivo torpe e com emprego de fogo —, que aumentariam a pena. Porém, a Justiça retirou essas qualificadoras e converteu para homicídios simples.

Para o MP-RS, Kiko e Mauro são responsáveis pelos crimes e assumiram o risco de matar por terem usado "em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate".

Marcelo e Luciano foram apontados como responsáveis porque "adquiriram e acionaram fogos de artifício (...), que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate".

A denúncia do Ministério Público lista ainda outros 10 itens que caracterizam o dolo eventualquando, mesmo sem querer o resultado, a pessoa assume o risco de causá-lo —, como a boate não apresentar saídas alternativas ou sinalização de emergência adequada, uso inapropriado de material inflamável, funcionários não terem treinamento para situações de emergência, evacuação ter sido bloqueada por seguranças e equipamentos e exaustores estarem obstruídos, impedindo a dispersão da fumaça tóxica. (Veja a reconstituição no vídeo abaixo)

Fantástico faz reprodução do ambiente da boate Kiss

Fantástico faz reprodução do ambiente da boate Kiss

3. Como funcionará o julgamento?

O Tribunal de Justiça (TJ-RS) estima que o julgamento se estenda por cerca de duas semanas, já que apenas o processo principal soma 91 volumes e 19,1 mil páginas. Ele deve começar às 9h de 1º de dezembro, no plenário do 2º andar do Foro Central I, em Porto Alegre, e as sessões serão presididas pelo juiz Orlando Faccini Neto, responsável por determinar as penas, em caso de condenação.

Na manhã do dia do júri, serão sorteados os sete jurados que vão compor o Conselho de Sentença. Eles só poderão se comunicar com os oficiais de justiça que estarão responsáveis por eles e pelas testemunhas. O grupo responsável pela condenação ou absolvição dos réus não terá acesso a telefone, internet, televisão, rádio ou jornal. Em caso de desobediência, o jurado estará sujeito a multa e a expulsão.

Nesse dia, os sobreviventes e testemunhas que serão ouvidas devem comparecer no local de julgamento somente a partir das 13h.

Plenário do Foro Central de Porto Alegre onde ocorrerá o julgamento da Kiss — Foto: Lilian Lima/g1 RS

Durante o julgamento, serão ouvidas, pela ordem, 10 sobreviventes, cinco testemunhas de acusação arroladas pelo Ministério Público e as testemunhas de defesa, sendo cinco para cada réu, menos de Luciano, que não fez indicação. No total, serão inquiridas 19 testemunhas, já que uma delas é comum a duas defesas.

O tempo destinado à acusação e à defesa pode variar, mas deve ser de cerca de nove horas. Serão debates de 2h30 de manifestação da acusação e o mesmo tempo dividido entre as quatro defesas (cerca de 38 minutos para cada). A réplica e a tréplica serão de duas horas tanto para as defesas (30 minutos cada) quanto para a acusação, e são opcionais.

Os trabalhos ocorrerão pela manhã, tarde e noite, todos os dias, com horário previsto das 9h às 23h. Depois dos debates, os jurados serão indagados se estão prontos para decidir, e passam a uma sala privada para responder a um questionário.

Eles decidem individualmente, por voto secreto e com cédula depositada em uma urna, respondendo a perguntas formuladas pelo magistrado. A maioria simples prevalece, ou seja, bastam quatro votos para definir.

De volta ao Plenário, o juiz anuncia o resultado e profere a sentença. As penas são determinadas por ele com base no cálculo a partir do que foi decidido pelos jurados.

Devido à pandemia, o local terá entrada restrita mediante sorteio prévio. Veja, abaixo, como será a distribuição dos 124 lugares disponíveis:

  • 58 - Associação dos Familiares e Vítimas da Tragédia de Santa Maria
  • 28 - Defesa dos acusados
  • 12 - Imprensa
  • 10 - Familiares que não integram a AVTSM
  • 8 - Autoridades
  • 6 - Reserva
  • 2 - Ministério Público

Plenário está localizado no 2° andar do Foro Central I — Foto: DINFRA/TJRS

4. O que dizem as defesas?

Jader Marques, que defende Kiko Spohr, diz que o julgamento será a oportunidade para que seu cliente dê sua versão do que aconteceu.

"Desde 27 de janeiro de 2013, Elissandro Spohr tem vivido a angústia de ser acusado de ter atuado dolosamente para a ocorrência de um dos episódios mais tristes da história do país. No dia 1º de dezembro, o Kiko poderá falar da sua vida até aquele fatídico dia 27 e da angústia que tem sido esse período de espera pela oportunidade de explicar tudo o que aconteceu. A defesa e Elissandro apenas aguardam o início dos trabalhos", disse Marques.

Já Mario Luis Cipriani, que representa Mauro Hoffmann, sustenta que ele não tinha qualquer participação na rotina da empresa.

"A defesa espera um julgamento com serenidade e com respeito a todas as partes, tendo a certeza de que Mauro não teve qualquer participação nos fatos denunciados. Era um investidor e não administrava o estabelecimento. Como sócio-quotista, sem qualquer participação na rotina da empresa, não teve nenhum ato decisório que o ligue ao nexo causal descrito na denúncia, e, por isso, além de outros inúmeros fatores, a defesa entende que Mauro não deveria ser submetido ao júri popular", afirma Cipriani.

O advogado Jean Severo defende que Luciano Bonilha Leão foi uma vítima no processo.

"Nós trabalhamos com a absolvição do Luciano. O Luciano, no nosso sentir, é uma grande vítima também nesse processo. Não tem nada a ver com essa situação. Nunca foi proprietário da casa ou músico. Ele era uma pessoa que prestava serviços para banda. Então, o Luciano tem que ser absolvido desse júri que sem dúvida nenhuma deverá ser um dos mais longos do país", sugere Severo.

A advogada de Marcelo Jesus dos Santos, Tatiana Vizotto Borsa, informou ao g1 que prefere não se manifestar.

Foro Central de Porto Alegre recebe o julgamento a partir do dia 1º de dezembro — Foto: Imprensa/TJRS

5. Por que o processo se estende por quase nove anos?

Desde a noite do incêndio, em 27 de janeiro de 2013, até 1º de dezembro deste ano terão passados 3.230 dias, quase nove anos. Neste período, o processo teve inúmeras etapas, entre apresentação da denúncia, recursos, embargos e pedidos de desaforamento e desmembramento do júri.

No dia seguinte à tragédia, os dois sócios-proprietários da boate e os dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira foram presos temporariamente. Um dia depois, o inquérito para apurar irregularidades administrativas que possam ter contribuído para a tragédia foi instaurado, e a Justiça converteu a prisão temporária em preventiva em 1º de março.

Em 2 de abril de 2013, o Ministério Público denunciou os quatro réus e também dois bombeiros e dois empresários por fraude processual e falso testemunho, sendo acolhida no dia seguinte pela Justiça. Os oficiais envolvidos também são julgados pela Justiça Militar ao longo do ano.

Em 29 de maio daquele ano, a 1ª Câmara Criminal do TJ-RS revogou a prisão preventiva dos quatro acusados e eles passaram a responder ao processo em liberdade. Dois meses depois, a 4ª Câmara Criminal determinou o arquivamento do expediente contra o prefeito Cezar Schirmer.

No fim de 2013, foi publicada pelo governo do estado a lei número 14.376, denominada Lei Kiss, que estabelece normas sobre segurança, prevenção e proteção contra incêndios nas edificações e áreas de risco de incêndios. Emendas completares à lei foram aprovadas em 2014.

Em maio de 2015, uma liminar do juiz Carlos Alberto Ely Fontela, da 3ª Vara Cível de Santa Maria, determina a retirada de cartazes e faixas de protesto colocadas na fachada do prédio. Aquele ano também se caracterizou por uma disputa judicial entre movimentos ligados às famílias das vítimas e o o promotor Ricardo Lozza.

Naquele ano também aconteceram uma série de depoimentos do processo, desde peritos até os réus.

Já em 2016, a Justiça de Santa Maria determinou que os acusados de serem os responsáveis pela tragédia sejam julgados pelo tribunal do júri.

Após decisões contrárias e favoráveis, o julgamento por um tribunal popular foi confirmado em março de 2017. Por outro lado, os magistrados afastaram qualificadoras e os acusados pasam a ser julgados por homicídio simples.

Em 1º de dezembro daquele ano, nova reviravolta: Tribunal de Justiça gaúcho desconsidera dolo e delibera que réus não irão a júri.

No ano seguinte, após o 1º Grupo Criminal do TJ-RS negar, mais uma vez, o tribunal do júri, o caso foi para a esfera federal. Até que, em junho de 2019, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decide pela realização do tribunal do júri.

Com o julgamento confirmado, a discussão passou a ser sobre o foro em que ocorreria, se em Santa Maria ou em Porto Alegre, além da divisão dos réus em tribunais do júri distintos, o que se estendeu pelos últimos dois anos.

Por fim, com início do surgimento de casos da pandemia de Covid-19, em 2020, o julgamento previsto para o começo daquele ano foi suspenso. Em abril de 2021, com a situação mais controlada, foi agendado para esta quarta (1º), enfim, o tribunal do júri dos quatro réus.

*A assistente Juliana Borgmann colaborou com supervisão do jornalista Matheus Beck.

Vídeos: Tudo sobre o Caso Kiss

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